Começando a
despertar
Texto de Ana Jácomo
"Não sei
exatamente em que momento comecei a despertar. Só sei que tudo começou a ganhar
uma cara que, no fundo, eu já conhecia, mas havia esquecido como era. Comecei a
despertar do sono estéril que, com suas mãos feitas de medo e neblina, fez
minha alma calar. E foi então que comecei a ouvir o canto de força e ternura
que a vida tem.
Não sei exatamente
em que momento comecei a despertar. Só sei que ninguém começa a despertar antes
do instante em que algo em nós consegue deixar à mostra o truque que o medo
faz. Só então a gente começa, devagarinho, para não assustar o medo, a refazer
o caminho que nos leva a parir estrelas por dentro e a querer presentear o
mundo com o brilho do riso que elas cantam. Só então a gente começa a entender
o que é esse sol que mora no coração de todas as coisas. Não importa com que
roupa elas se vistam: ele está lá.
Não sei exatamente
em que momento comecei a despertar. Só sei que comecei a lembrar de onde é o
céu e a perceber que o inferno é onde a gente mora quando tudo é sono. Comecei
a sair dos meus desertos. E a olhar, ainda que timidamente, para todas as
miragens, sem tanto desprezo, entendendo que havia um motivo para que elas
estivessem exatamente onde as coloquei. Nenhum livro, nenhum sábio, nada
poderia me ensinar o que cada uma me trouxe e o que, com o passar do tempo,
continuo aprendendo com elas. Dizem que só é possível entendermos alguns
pedaços da vida olhando para eles em retrospectiva. Acho que é verdade.
Não sei exatamente
em que momento comecei a despertar. Só sei que comecei a compreender o respeito
e a reverência que a experiência humana merece. A me dar conta de delícias que
passaram despercebidas durante um sono inteiro. E a lembrar do que estou
fazendo aqui. Ainda que eu não faça. Ainda que os vícios que o sono deixou
costumem me atrapalhar. Ainda que, de vez em quando, finja continuar dormindo.
Mas não tenho mais tanta pressa. Comecei a aprender a ser mais gentil com o meu
passo. Afinal, não há lugar algum para chegar além de mim. Eu sou a viajante e
a viagem.
Não sei exatamente
em que momento comecei a despertar. Só sei que comecei a querer brincar, com
uma percepção mais nítida do que é o brinquedo, mas também com um olhar mais
puro para o que é o prazer. A ouvir o chamado da minha alma e a querer desenhar
uma vida que passe por ele. A assumir a intenção de acordar a cada manhã
sabendo para o que estou levantando e comprometida com isso, seja lá o que isso
for, porque, definitivamente, cansei de perambular pelos dias sem um
compromisso genuíno. E comecei a gritar por liberdade de uma forma que me surpreendeu.
Antes eu também gritava, mas o medo sufocava o grito para que eu não me desse
conta do quanto estava presa.
Não sei exatamente
em que momento comecei a despertar. Só sei que comecei a desejar menos entender
de onde vim e a desejar mais aprender a estar aqui a cada agora. Só sei que
descobri que a solidão é estar longe da própria alma. Que ninguém pode nos
ferir sem a nossa cumplicidade. Que, sem que a gente perceba, estamos o tempo
todo criando o que vivemos. Que o nosso menor gesto toca toda a vida porque
nada está separado. Que a fé é uma palavra curta que arrumamos para denominar
essa amplidão que é o nosso próprio poder.
Não sei exatamente
em que momento comecei a despertar. Só sei que não importam todos os rabiscos
que já fizemos nem todos os papéis amassados na lixeira, porque todo texto bom
de ser lido antes foi rascunho. E, por mais belo que seja, é natural que, ao
relê-lo, percebamos uma palavra para ser acrescentada, trocada, excluída. A
ausência de uma vírgula. A necessidade de um ponto. Uma interrogação que surge
de repente. Viver é refazer o próprio texto muitas, incontáveis, vezes.
Não sei exatamente
em que momento comecei a despertar. O que sei é que não quero aquele sono outra
vez."
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